A CRISE NA UCRÂNIA

A CRISE NA UCRÂNIA

 Francisco Bicudo

As dúvidas são muitas, profundas. E para tentar jogar um pouco mais de luz sobre os movimentos e interesses que marcam a disputa pela Ucrânia, sem pretender esgotar o assunto, conversamos com Sidney Leite, historiador e professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes. Ele analisa as dimensões históricas, étnicas, geopolíticas e econômicas do conflito que coloca em lados opostos União Européia/Estados Unidos e a Rússia, gigantes internacionais que de alguma forma acabam emparedando a nação do leste europeu e fazendo dela o ator mais frágil do conflito. O professor é enfático e contraria premissa que vem sendo comemorada pelos nossos meios de comunicação: “o que houve recentemente na Ucrânia não foi uma revolução, mas um golpe de Estado”.

Crédito da imagem: Wikimedia Commons

O que nós vimos nas últimas semanas é consequência de uma história de longa duração. A Ucrânia não conseguiu se posicionar claramente em relação a sua identidade cultural e, por conta disso, também em relação à sua inserção no sistema internacional. Na época da Guerra Fria, estava sob a órbita da União Soviética. Não havia ali muitas alternativas e dúvidas sobre esse posicionamento. Era uma espécie de satélite, dentro do universo de hegemonia da União Soviética. Com o fim da Guerra Fria, temos um sistema internacional muito mais complexo. O mundo agora é muito mais difícil de analisar e de explicar. Escapamos do esquema dos dois pólos e dos países não alinhados. A questão específica da Ucrânia que desencadeou essa grande revolta, com substratos até de ódio, que vai se manifestar num ódio racial e político, é que nós temos um lado do país, que é maior, vinculado àquilo que a gente poderia chamar de civilização russa, e outro lado, menor, que pretende se associar à União Europeia. Essa não é uma questão nova. Foi muito intensa nos anos 1930 e 40. Inclusive quando a Alemanha nazista invade a URRS, parte da população da Ucrânia recebe os nazistas de braços abertos. Havia ali uma afinidade ideológica e cultural e que de alguma forma se mantém, claro, com adaptações a outro contexto. E você tem outra parte, essa é uma história muito dura, que diz respeito a uma parcela significativa da população ucraniana, de origem judaica, que foi muito perseguida. Então A Ucrânia tem um capítulo da sua história que, eu diria, é ao mesmo tempo muito doído, colocado debaixo do tapete, que é essa simpatia pelos nazistas, e por outro lado um passado heroico, sofrido, de resistência ao nazismo e de cerrar fileiras dentro do exército vermelho e enfrentar as tropas de Hitler, de forma vitoriosa. 

Não consigo encontrar um conceito de revolução que se adapte ao que aconteceu na Ucrânia. O que se deu foi um golpe de Estado. Parte das oligarquias voltou ao poder, num governo que é caótico do ponto de vista ideológico, porque nós temos desde lideranças de centro até a extrema direita, cujo partido inclusive se chama Partido Nacional Social da Ucrânia. Isso lembra alguma coisa. É muito delicado, perigoso.

Temos ainda que considerar uma questão étnica que reforça essa disputa política, esse pêndulo pró-Rússia ou pró-Europa. Essa é uma discussão estrutural. Conjunturalmente, essa é uma discussão importante, a Ucrânia não conseguiu consolidar quadros políticos estáveis, confiáveis e competentes, lideranças, instituições sólidas, o que enfraquece a própria democracia, porque os partidos políticos são fracos. É muito forte lá o poder das oligarquias, é uma nação dividida entre oligarquias, que controlam setores importantes da economia. E essas oligarquias se compõem, se dividem. Guardadas as devidas proporções, e agora estou sendo bem didático, é como na época da República Velha no Brasil, quando as oligarquias faziam composições políticas que davam certa estabilidade ao governo, mas, uma vez no poder, disputavam fatias dessa administração e entravam em conflito. A democracia na Ucrânia sempre foi um grande mal-entendido, para usar uma frase do Sergio Buarque de Holanda. E o que nós vimos aí nas últimas semanas foi a eclosão dessa dupla dinâmica e esfera, a soma dos problemas estruturais e conjunturais, que colidiram. Outra marca acentuada do país é a presença muito arraigada da corrupção, que é característica mais ampla aliás de todo Leste Europeu. Como temos Estados e instituições fracas e empresários que privatizam interesses públicos, a corrupção é algo que atravessa esses países. Mas eu acho que, mesmo nesse cenário, se não tivéssemos uma liderança estratégica capaz de usar todo esse poder, as disputas não teriam grandes efeitos. O fato é que o Putin (Vladimir Putin, presidente da Rússia), quer gostemos dele ou não, é um grande estrategista, como poucos, um dos últimos remanescentes de uma geração que está desaparecendo. Ele sabe usar o poder. Faz isso muito bem. Há interesses que marcam a alma russa, o expansionismo, o militarismo, as tropas e a saída para o mar na Criméia. O Putin, importante dizer, recolocou a Rússia no jogo internacional. Há vinte anos, a Rússia estava desacreditada. Vamos lembrar que a Ucrânia é muito dependente economicamente dos russos, que controlam cerca de 67% de toda a economia da Ucrânia, em algumas regiões essa dependência chega a 90%. Os grandes oleodutos russos que chegam à Europa passam pela Ucrânia, o que representa inclusive royalties para os ucranianos. Não é à toa, portanto, que a Criméia, por exemplo, tem esse sentimento de pertencer à Rússia. E o Putin sabe jogar bem com isso. Imaginar que a Europa vá tomar medidas punitivas e sanções em relação aos russos? É muito complicado fazer essa afirmação. Porque a gente está falando de gás que sai da Rússia, atravessa a Ucrânia e vai aquecer as casas dos europeus durante o inverno. É vital. E, ao contrário do petróleo, o gás não é commodity. A Rússia controla o preço, o abastecimento. É aquela história de, se quiser, fechar a torneira. É muito poder. Por isso é que entendo que estamos vivendo agora a fase do cabo-de-guerra, os dois lados estão esticando a corda. Mas os dois percebem que são fortes e reconhecem também a força do outro lado. Acho que um próximo passo é um degelo nessas falas todas.

A Ucrânia tem um capítulo da sua história que, eu diria, é ao mesmo tempo muito doído, colocado debaixo do tapete, que é essa simpatia pelos nazistas, e por outro lado um passado heroico, sofrido, de resistência ao nazismo e de cerrar fileiras dentro do exército vermelho e enfrentar as tropas de Hitler, de forma vitoriosa. 

A lógica pragmática da economia deve prevalecer, pensando nos três atores gigantes, a Europa, os Estados Unidos e a Rússia. Resta o elo mais fraco nessa cadeia, que é a Ucrânia. Porque o atual governo, é importante a gente dizer, é uma posição minha, mas não houve uma revolução lá. Não consigo encontrar um conceito de revolução que se adapte ao que aconteceu na Ucrânia. O que se deu foi um golpe de Estado. Parte das oligarquias voltou ao poder, num governo que é caótico do ponto de vista ideológico, porque nós temos desde lideranças de centro até a extrema direita, cujo partido inclusive se chama Partido Nacional Social da Ucrânia. Isso lembra alguma coisa. É muito delicado, perigoso. Eu entendo que a responsabilidade desse governo é enorme e não o vejo à altura de desenvolver uma política de negociação, de consenso, já que o país está dividido, partido. Por isso, o que de melhor pode acontecer é um próximo passo de moderação, de atitudes mais racionais por parte dos gigantes internacionais, porque de outra forma o país corre sério risco de rachar. 

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